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17/09/2024 - 16h19

Segurança psicológica na liderança

Líderes que cuidam da própria segurança psicológica constroem senso de pertencimento, diz Clarissa Medeiros

 

 

Por Clarissa Medeiros*

 

 

Como ideia central, vamos partir do pressuposto de que um ambiente psicologicamente seguro é um ambiente onde as pessoas possam trabalhar preservando a sua saúde mental. Esse é o conceito que sempre é discutido nas argumentações em relação ao tema. Porém, gostaria de fazer uma reflexão sobre um ponto que quase nunca é abordado.

 

Muitos dedos são apontados sobre a responsabilidade da liderança, mas pouco se fala sobre a necessidade de proteger e apoiar a saúde psicológica dos líderes. Então, a questão que gostaria de desenvolver com você é: quem cuida da saúde mental da liderança?

 

Partindo do começo

Vamos partir do princípio amplamente difundido de que o líder deve garantir a segurança psicológica do time. Isso parece plenamente racional.

 

Mas, o que precisamos reforçar hoje é que, na maioria das organizações, o maior desafio ainda é criar uma política empresarial que de fato contribua para esse objetivo. Pois esse problema é uma questão cultural. Ainda precisamos lidar com vários tabus.

 

E, sim, a vulnerabilidade emocional ainda é vista como uma fraqueza. É como se fosse errado expressar sentimentos.

 

Qual é o cenário e impactos nos negócios?

Hoje, o ambiente corporativo está marcado por uma crescente escala de transtornos mentais, que afetam diversos níveis de carreira e, também, a alta liderança. Isso significa que não é mais possível apenas cobrar resultados dos líderes e gestores, é crucial questionar: quem cuida deles?

 

Liderar atualmente exige, em primeiro lugar, a prática do autocuidado, pois sem essa base, os líderes ficam ainda mais vulneráveis ao desgaste e ao esgotamento. Quando essa prática não é consistente, o ambiente organizacional gera um custo emocional significativo para os líderes, o que impacta não apenas a produtividade, mas a própria saúde do líder e a qualidade das relações.

 

Quando isso acontece, é evidente que há um impacto negativo importante nos colaboradores e nos resultados do negócio. Isso acontece porque, sem uma atmosfera segura, as pessoas tendem a evitar conversas difíceis, o que leva a silenciar questões importantes, perpetuando o ciclo do estresse.

 

No C-level e no nível gerencial, muitas vezes, é normalizado o estresse crônico, como se bem-estar fosse uma questão para promover aos times, como se a liderança devesse “suportar tudo” e, mesmo assim, “dar o exemplo”.

 

É sabido que muitos líderes aprenderam a ter uma postura voltada ao “comando e controle”, o que pode levar, em alguns casos, à uma postura pouco empática e até mesmo impiedosa e opressora. Hoje, sabemos que esse mindset se tornou uma visão ultrapassada; não é possível gerir pessoas como se o ser humano fosse apenas um recurso material.

 

Por isso, é evidente que empresas que têm a sua alta liderança “adoecida” vão multiplicar padrões de comportamento “adoecedores”.

 

Precisamos olhar muito além do resultado, é preciso cuidar de nós mesmos como líderes e lidar com a questão da sobrecarga, da dificuldade de priorizar diante do excesso de demandas conflitantes e de aceitar os limites das outras pessoas.

 

As duas ondas da saúde mental

Na última década, as organizações têm enfrentado um crescente desafio relacionado à saúde mental. Esse movimento pode ser entendido a partir de duas ondas principais, que refletem a evolução das abordagens e necessidades no ambiente corporativo.

 

A chamada “primeira onda” dos programas de saúde mental nas empresas surgiu como uma resposta emergencial durante a pandemia. O foco estava no auxílio imediato, ao oferecer suporte psicológico, ajustar rotinas de trabalho remoto e criar mecanismos para ajudar as pessoas a enfrentarem o isolamento social e a incerteza generalizada.

 

Atualmente, estamos vivenciando a “segunda onda” desses programas de saúde mental nas empresas, que adotam um enfoque mais preventivo e proativo. Após a pandemia, a alta liderança passou a se sentir muito mais sozinha, especialmente quando o trabalho passou a envolver mais times remotos.

 

Agora, o foco está em evitar que as pessoas adoeçam, gerenciando de maneira mais eficaz a crescente crise de ansiedade, sobrecarga e estresse. Deixando clara a percepção de que, além de medidas assistenciais emergenciais, é fundamental estabelecer programas de longo prazo para o bem-estar mental das lideranças.

 

De acordo com o importante contexto do Setembro Amarelo – uma campanha dedicada à conscientização sobre a importância da prevenção do suicídio –, é essencial ressaltar a dimensão de cuidar da saúde mental como uma questão de sustentabilidade humana.

 

Segurança psicológica na prática

Precisamos traduzir a segurança psicológica como uma condição de determinado ambiente, que é resultado da cultura predominante, manifestada no comportamento da liderança, e que se reflete na possibilidade de se expressar de maneira livre do medo de ser punido ou excluído.

 

Uma das grandes referências no tema, Amy Edmondson, autora do livro The Fearless Organization, relata que há uma relação direta entre as empresas onde há a cultura da segurança psicológica e a sensação de conforto para poder expor ideias e discordar, sem medo do julgamento.

 

É sobre poder correr riscos. Porque onde a cultura de feedback respeitoso existe, há mais confiança e transparência nos momentos em que há discordância.

 

Infelizmente, a maioria das empresas está distante de um paradigma psicologicamente seguro, por falta de visão e de preparo. É, inclusive, muito comum a recusa a uma comunicação transparente e honesta.

 

Já treinei inúmeras lideranças e é recorrente constatar a resistência a praticar o feedback e a investir no alinhamento com os liderados. Muitos líderes simplesmente acreditam que “não têm tempo” para desenvolver pessoas.

 

E o que os dados dizem sobre o impacto da segurança nas empresas?

Em um recente estudo da McKinsey & Company (2021), foi explorado o impacto da segurança psicológica no bem-estar dos colaboradores. A análise revela a importância dos comportamentos de liderança no clima positivo da equipe, focando em dois aspectos principais: apoio e consulta e o desafio proposto aos colaboradores.

 

Esses comportamentos foram divididos em quatro categorias:

 

 Líderes que demonstram apoio e consulta, mas oferecem menos desafio

Esse grupo representa 20% dos líderes. Entre os colaboradores liderados por esses gestores, 62% relatam um clima positivo na equipe. Ou seja, o apoio constante gera uma sensação de segurança e bem-estar, mesmo sem haver grandes desafios.

 

► Líderes que combinam apoio, consulta e desafio

Representando 26% dos líderes, esse grupo tem o maior impacto positivo no clima de equipe; 72% dos colaboradores que trabalham com esses líderes percebem um ambiente de trabalho saudável e favorável.

 

 Líderes que raramente demonstram apoio, consulta e desafio

Essa é a maior parcela, com 41%. Porém, apenas 27% dos colaboradores desse grupo consideram o ambiente de trabalho positivo. A falta de apoio e desafios leva a um clima de equipe menos satisfatório e menos seguro psicologicamente.

 

 Líderes que frequentemente desafiam, mas raramente oferecem apoio e consulta

Esse grupo, composto por 13% dos líderes, também enfrenta dificuldades em criar um clima positivo. Embora haja desafios, a falta de apoio resulta em apenas 32% dos colaboradores relatando um ambiente de trabalho positivo.

 

Portanto, essa análise deixa claro que, para criar um ambiente de trabalho saudável e psicologicamente seguro, os líderes precisam equilibrar apoio com desafios. Aqueles que conseguem alinhar essas práticas têm mais sucesso em promover um clima positivo com produtividade saudável nas equipes.

 

Consequências e benefícios

Por outro lado, a construção de um ambiente de segurança psicológica traz inúmeros benefícios. Na prática, isso envolve a criação de espaços de diálogo, onde não basta apenas ouvir, mas lidar com questões que afetam diretamente o bem-estar, como a dificuldade de se desconectar do celular ou do trabalho.

 

Em um nível mais avançado, a segurança psicológica permite que as pessoas questionem o status quo, promovendo inovação e melhorias nos processos ao desafiar as normas estabelecidas.

 

Empresas que priorizam a segurança psicológica, como o Google, que em 2014 identificou esse fator como central para o desempenho de suas equipes, colhem resultados extraordinários. As equipes mais eficientes são aquelas que operam em ambientes de confiança e transparência, onde se é possível expressar ideias e correr riscos, sem medo de retaliação.

 

Além disso, a segurança psicológica é um pré-requisito essencial para a promoção da diversidade e inclusão, temas cada vez mais importantes nas organizações. Sem um ambiente seguro, esses valores não podem ser plenamente implementados.

 

Conclusão: uma nova cultura de boas práticas

Atualmente, é necessário repensar o modelo de liderança que queremos: uma liderança humanizada é servidora e cuidadora, focada na preservação da saúde mental dos colaboradores. Esse papel é fundamental para moldar uma cultura organizacional que priorize o bem-estar e a inclusão e isso não deveria ser visto como contrário ao resultado, mas como o pré-requisito.

 

De acordo com Timothy Clark, autor de 4 Stages of Psychological Safety, a segurança psicológica está intimamente ligada à segurança no trabalho. Clark ressalta que ambientes seguros resultam em menos afastamentos, o que reduz impactos financeiros para as empresas.

 

Um aspecto essencial desse processo é a liderança humanizada. Ao invés de culpar, o foco deve ser em entender o que aconteceu e como melhorar. Isso cria um ambiente de crescimento contínuo, combate a invisibilidade e incentiva a contribuição de todos. A capacidade de perdoar, de aceitar falhas e relevar erros é uma competência fundamental atualmente.

 

Uma liderança eficaz, que cuida da sua própria segurança psicológica, é capaz de gerar reflexão, promover diálogos construtivos e, acima de tudo, construir um senso de pertencimento. Não se trata mais de assistencialismo, mas de um processo contínuo de engajamento e inclusão.

 

Essa mudança cultural é crucial para enfrentar os desafios de liderar. E o caminho está claro: promover a segurança psicológica é investir no futuro da organização e de seus colaboradores, criando um ambiente saudável, inovador e sustentável.

 

O futuro das empresas está nas mãos de nós, líderes, ao compreender que cuidar do ser humano é a chave para o sucesso coletivo.

 

*Clarissa Medeiros é mentora de lideranças, palestrante, sócia-fundadora da Clarity Global e colunista do portal Gestão RH

 

 

Foto: Daniela Toviansky